
Da Autonomia da Obra à Experiência Estética
Esta reflexão nasce de uma provocação fundamental desenvolvida durante palestra no láDaMata: como compreender o interior do artista na contemporaneidade sem cairmos em anacronismos que ignoram a mutabilidade histórica dos conceitos? Para além da questão meramente semântica, essas transformações impactam diretamente os sujeitos e as relações culturais, redefinindo não apenas o que entendemos por "interior do artista", mas também sua influência na obra e na experiência estética. A própria compreensão do que constitui esse interior é impactada, e outros conceitos surgem nesse contexto: qual a influência desse interior na obra, como isso mudou ao longo da história, o que significa o gênio, a arte pela arte e a importância de compreender a experiência.
A arte contemporânea conquistou uma autonomia fundamental: foi emancipada da necessidade de referenciais externos para que lhe seja atribuído sentido ou significado. Pensada a partir de uma autonomia de existência, apresenta-se como algo com a natureza de ser uma proposição de experiência estética, não sendo portadora de uma mensagem prévia, relação biográfica ou conceitual com o artista. Essa obra sim nasce do artista e seus conceitos, e continuará sendo ligada a ele, mas não mais naquilo que constitui a arte nessa relação. Essa arte passa a ser compreendida em sua potência abstrata e singular, emergindo em cada pessoa por meio de uma relação verdadeira e intensa com a obra. Desse modo, o interior do artista na contemporaneidade se reflete naquilo que se presentifica na obra por meio das escolhas feitas no processo, a obra como uma manifestação da consciência da consequência das escolhas, o reverberar simbólico vivo ativado pelo espectador e que oferece o sopro criativo final para o nascimento da poética.
Para contextualizar essa relação, torna-se necessário examinar algumas referências teóricas que embasam esse entendimento. Entre elas, destaca-se uma palestra que ocorreu na bienal contestando esse lugar de Arte pela Arte cunhado no século XIX, defendendo que a Arte sim tem uma função, no caso terapêutica.
Todo mundo que pensou sobre a arte pensou que ela tinha propósitos. Seria muito esquisito pensar uma atividade sem nenhum propósito. Esse pensamento de que a arte não tem função foi inventado na França no fim do século 19 a fim de criar uma distinção porque a arte não tem uma função utilitária tão evidente. Você não pode comê-la, não pode dormir nela. (ARMSTRONG apud CÁCERES, 2025)
Essa posição, apresentada por John Armstrong na 36ª Bienal Internacional de São Paulo e relatada por André Cáceres no jornal Estadão, questiona frontalmente a suposta inutilidade da arte.
Sem contestar diretamente a fala de Armstrong, entendendo que a arte possa sim ser terapêutica, defendo a não funcionalidade e inutilidade dela, mas como uma virtude, como uma coisa que se entrega ao público em um estado de suspensão e virtualidade que possibilita canalizar e atribuir a função e utilidade necessária no momento da experiência com a obra, seja essa função, por exemplo, terapêutica. Essa "inutilidade" não representa um esvaziamento, mas sim uma potencialidade que se atualiza na relação com cada espectador.
Essa Arte pela Arte vista daqui não é um esvaziar de sentido que evoca um artista gênio por meio de uma ótica pejorativa, do gênio como um ser diferente e raro capaz de canalizar essas inspirações divinas ou de uma sensibilidade que poucos acessam. Mas sim fruto de uma ideia de genialidade explorada por uma ótica de desinteresse, como na relação conceitual do embate entre Kant e Heidegger.
Fica claro que é pelo desinteresse kantiano que Heidegger percebe uma outra possibilidade de relacionamento com o mundo, descartando simultaneamente o caráter construtivo da ciência e a visada sempre utilitária da lida cotidiana. Essa outra possibilidade não aparece para descartar as demais, mas para chamar a atenção sobre um tipo de abertura em que o sujeito se põe junto ao mundo, sem o manipular, mas deixando-o ser, e assim afirmando sua copertença e seu cuidado. (OSÓRIO, 2005, p. 29)
Ao se aproximar do lugar onde a experiência nasce, seja o artista em relação ao público ou seja o espectador em relação à obra, uma força muito próxima se apresenta, de certa forma ambos habitam esse gênio. E a Arte se apresenta como fenômeno nessa relação. Uma obra que sim está relacionada com o artista, mas de modo transformado.
A verdadeira obra de arte nasce do 'artista' – criação misteriosa, enigmática, mística. Ela desprende-se dele, adquire vida autônoma, torna-se uma personalidade, um sujeito independente, animado de um sopro espiritual, o sujeito que vive uma existência real – um ser. Não é um fenômeno fortuito que surge aqui ou ali, indiferentemente, no mundo espiritual. Como todo ser vivo, ela é dotada de poderes ativos, sua força criadora não se esgota. (KANDINSKY, 1996, p. 125)
Contudo, essa autonomia da obra não dispensa a responsabilidade e o papel fundamental do artista.
É ao artista que compete mudar essa situação. Deve começar reconhecendo os deveres que tem para com a arte, portanto, para consigo mesmo, não se considerar o senhor da situação, mas alguém que está a serviço de um ideal particularmente elevado, o qual lhe impõe deveres preciosos e sagrados, uma grande tarefa. Deve trabalhar sobre si mesmo, aprofundar-se, cultivar sua alma enriquecê-la, a fim de que seu talento tenha algo a cobrir e não seja como a luva perdida de uma mão desconhecida, a vã e vazia aparência de uma mão. O artista deve ter alguma coisa a dizer. Sua tarefa não consiste em dominar a forma e sim em adaptar essa forma a seu conteúdo. (KANDINSKY, 1996, p. 127)
A obra vista como um ser que se apresenta, não mais a partir de uma mimese do mundo, ou porta voz de uma instituição ou pessoa, um deixar de ser algo que parece natureza, para um algo e é natureza! Mas que nasce na natureza humana, uma virtude efêmera, que se apresenta na experiência estética.
Na concepção comum, a obra de arte é frequentemente identificada com a construção, o livro, o quadro ou a estátua, em sua existência distinta da experiência humana. Visto que a obra de arte real é aquilo que o produto faz com e na experiência. (DEWEY, 2010, p. 59)
Busco trazer uma provocação sobre a beleza da Arte contemporânea, uma beleza no entanto que não é fruto de um fazer técnico ou resultante do trabalho de um gênio como visto à moda antiga. Uma beleza, portanto, que mora nessa proposição de experiência, bela por poder dar vazão a essa arte que nasce em cada pessoa. Sendo a Arte contemporânea aquela que, entre as inúmeras artes, está dedicada a esse estudo e essa existência. A ideia é sim, de certa maneira trazer uma Arte pela Arte, mas com a intensidade potencial da fenomenologia que, configurando a arte como esse fenômeno que emerge na subjetividade, no interior do ser humano, por meio de sua capacidade de abstração das coisas, sejam elas naturais ou culturais. Essa arte contemporânea, portanto, não se apresenta como fuga do mundo, mas como uma forma específica de estar no mundo, de relacionar-se com ele através da experiência estética que nasce do encontro entre a proposição do artista e a receptividade do espectador, criando um espaço de suspensão onde novos sentidos podem emergir.
CÁCERES, André. Eles estavam errados. Estadão, São Paulo, 2025. Disponível em: https://www.pressreader.com/brazil/o-estado-de-s-paulo/20250903/282170772274633?srsltid=AfmBOoo7ncz3ZZlpItKfJSq3AIAIYHgmmkOKGRQQHGfoohcs3-LI7MU5. Acesso em: 05/11/25.
DEWEY, John. Arte como experiência. Tradução Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
A palestra aconteceu no dia 08 de novembro de 2025, em nossa nova sede no coração de Atibaia.
Local: láDaMata - Espaço de Criação, Calçadão José Alvim, 165. Centro, Atibaia-SP.
Funcionamento: Terça a Sexta - 10h às 19h | Sábado - 9h às 17h.